ODEIO MEU MARIDO
Conto Francisco Piccirilo
“Sou uma senhora desquitada. Infelizmente meu casamento durou menos de dois anos. Considero-me uma das muitas vítimas do que se chama DESTINO”.
Lúcia Helena é uma moça que foi criada por família estranha; Seus pais muito pobres entregou a ela, que a criou, como se fosse filha legítima.
Conheci Lúcia Helena em casa de seus pais adotivos numa cidade do interior, quando então contou-me seu curto período matrimonial, num desabafo confidencial.
“Não conheci meus legítimos pais e só depois de menina moça vim saber que estava sendo criada por pais adotivos, porém, nunca deixei de respeitá-los e ao contrário, devotei-lhes meu amor reconhecido porque, aqueles que criam, que sofrem pela educação de um ser humano, principalmente quando de outra família, são os verdadeiros progenitores. Os outros, apenas colocam mais uma criança no mundo ao ficar moça conheci meu primeiro namorado. Do primeiro passei ao segundo, ao terceiro, com quem me casei. Meu namoro, como o noivado não foi o de uma moça compenetrada dos futuros deveres de uma mulher, de uma esposa e mãe. Gostando de liberdade e por ser muito nova, preferia deixar o noivo em casa e ir ao cinema, ao baile, aos passeios. Meu futuro marido tolerava isso porque via em mim os traços de uma infantilidade, pois reconhecia ele, uma menina de dezesseis anos de idade não está suficientemente amadurecida para um compromisso tão importante, como o casamento. Todavia, levado por esse intensão, Mauro foi me tolerando e finalmente viu seus desejos satisfeitos. Casou-se comigo, a despeito do papel que fiz durante o noivado. Após o casamento, Mauro achou que a vida de casada não lhe estava sendo útil em nossa cidade e mudamos então, para a Capital do Estado.
Com muito sentimento em ir morar longe de minha cidade natal, de meus pais e conhecidos, acompanhei meu marido, que também levou sua mãe e fomos instalados num bairro muito pobre da cidade.
Se para Mauro o noivado foi bem evasivo devido os meus procedimentos infantis, na grande metrópole fui eu que senti os efeitos de um péssimo marido. Longe de minha gente, num ambiente bem diferente, senti logo o grande erro que cometi. Havia me casado com um vagabundo. Fui infantil, mas fui honesta, trabalhadeira. Quando me casei senti minha responsabilidade de e por isso dediquei minha atenção ao marido, mas ele não correspondeu”.
—“Mauro!.., não é possível que você tenha escolhido São Paulo, para essa vida…. Aqui temos responsabilidades; precisamos comer, vestir, pagar o aluguel do quarto e prever o futuro! afinal somos casados e…
—Amanhã irei procurar emprego. Agora não me amole e vê se não fico sem o jantar, porque de almoço não vi nada.
“Essa vida vinha se arrastando há dias e, também minha sogra, que ficara viúva com seu único filho, concordava plenamente com a vadiagem dele. Mauro era um rapaz forte, simpático, inteligente. Não consegui compreender o motivo de sua virada no casamento. Eu fui volúvel, mas me compenetrei da responsabilidade, ele, ao contrário, inverteu. Os dias foram se passando e nossa família cada vez mais amargurada. A pequena pensão da viúva e o pouco que Mauro ganhava, não se sabe onde, não conseguiam equilibrar as despesas.
—Lúcia, repetia minha sogra um tanto enfurecida. Você precisa trabalhar! Aqui em São Paulo todos trabalham!
—Mas mamãe, eu posso trabalhar; mas é necessário que primeiro Mauro se coloque num emprego firme! Afinal, ele é o chefe da casa. Se seu ordenado não der, então irei também trabalhar em algum lugar para ajudá-lo.
—Você insinua que meu filho é vagabundo? Isso não admito, sua mal-educada! Bem que preveni meu filho para não se casar com moças de sua espécie! Toda moça que cresce sem pais é assim mesma; julgam-se somente no direito de receber tudo na boca!
—Isso não é verdade! gritei num momento de grande ódio. ” Entretanto, compreendi até onde ia meu destino naquela miserável casa”. Se estou falando assim é porque…
—-Chega!.., não admito gritos de quem quer que seja, principalmente de uma nora sem caráter, sem compreensão!…
“Meu marido dormia, quando eu e minha sogra discutíamos naquele cubículo de um quarto e cozinha, que também servia de sala. Eram três horas da tarde e porque as discussões se alterassem muito, Mauro acabou acordando e veio até nós enfurecido e, sem saber as razões da briga de sogra e nora me esbofeteou inesperada mente no rosto, com os argumentos próprios de um inveterado”.
—Vagabunda e nojenta! foi para isso que me casei com você?… maltratar minha mãe!… não tem vergonha nessa cara desrespeitando uma senhora indefesa?!… se não está contente com esta casa volte para sua terra; para aqueles que não souberam dar-lhe uma educação; para aqueles que a criaram mais por piedade, uma vez que nem seus legítimos pais a quiseram!
“Diante de tal sorte, envergonhada e com o rosto pegando fogo pelos sopapos e das palavras ouvidas, sai correndo pelas ruas, como uma desesperada. Mauro quiz sair atrás, mas sua mãe segurou-lhe. Felizmente, depois de percorrer algumas ruas e quadras em soluços, encontrei uma senhora que me interpelou”.
—Moça, que é isso? por que está chorando? aconteceu alguma desgraça?!
“Realmente eu chorava convulsamente. Naquele momento não distinguia nada; apenas senti alguém e ouvi uma voz de anjo. Espantada quiz voltar para traz, mas havia perdido a noção do lugar onde morava. Tranquilizada pela senhora, contei minha história, mas um tanto diferente.
—Meu marido ficou doente e desempregado. Somos três em casa e estamos sem o que comer; viemos do interior e pouco conhecemos aqui!
“A bondosa senhora percebeu pelo vermelhão e também pelas lágrimas, que minha história estava mal contada, mas aceitou-a, mesmo porquê, não tinha nada a haver com meus problemas”.
—Seu rosto e suas lágrimas, minha filha, diz bem o contrário. Infelizmente aqui na capital muitos casos ocorrem semelhante ao seu. Se quiser trabalhar em meu atelier, estou precisando de algumas auxiliares.
“Aquele convite naquela hora foi para mim um prêmio caído do céu. Afinal era uma profissão que sabia muito bem e o emprego vinha resolver um problema por demais necessário”.
—Irei prontamente, minha senhora, e se tiver roupas que me sirvam, iniciarem já o serviço!
—Veja como descobri seus argumentos contrários. Hoje você vai jantar e descansar; amanhã iniciará seus trabalhos.
“Diante de uma boa ocasião que se me apresentava segui minha primeira e desconhecida patroa. Poderia ser diferente o trabalho, mas na situação amarga em que me encontrava, toparia qualquer convite. Caminhamos algumas quadras e entramos num Salão de Beleza. Diversas moças atendiam numerosa clientela. Era um verdadeiro anjo de bondade, que apareceu num momento de trágicas consequências. Com aquele emprego dei o máximo de minha capacidade e habilidade, correspondendo a confiança de minha protetora. Permaneci ali durante duas semanas sem ser procurada por ninguém, a não ser pelas freguesas, que, modéstia à parte, me procuravam muito. Por duas semanas comi, dormi e nem percebi pelos dias que se passaram até que minha patroa resolveu intervir nessa ausência familiar. Eu, pelo menos, nesses quinze dias não tive o desprazer de ver um marido ordinário e uma sogra paranoica protegendo um filho sem qualidades e o pior, uma casa vazia de comida e compreensão. Mas dona Adelaide insistiu”.
—Lúcia Helena, disse a senhora, nada tenho a ver com sua situação particular, mas acho que você deve procurar seus familiares. Faz duas semanas que está aqui comigo e não é justo que continue assim.
—E’ verdade, dona Adelaide; mas como vou chegar em minha casa após esses dias fora? que irão eles julgar de mim? nem sei onde moro!
—Quanto isso irei com você e sua residência sei onde fica. Vamos!
“Alegre e satisfeita, bem alimentada, com um bom pagamento recebido, fomos para minha casa. Ao chegarmos bati na porta e instantes depois surgiu na porta minha sogra, com ares bem tristes, demonstrando que ali as coisas em nada deveriam ter melhorado”.
—Lúcia!… exclamou ela admirada. Onde você esteve todo esse tempo?! estávamos preocupados com seu desaparecimento! Mauro estava em ponto de ir à Delegacia de Pessoas Desaparecidas, para procurá-la!
—“Olhei para minha patroa e ela compreendeu naquelas palavras até onde ia a hipocrisia da velha”.
—Bem, minha filha. Se você ainda quiser trabalhar para mim, pode voltar amanhã. Hoje é interessante que fique com seus familiares. E dona Adelaide retirou-se.
—Claro que ela voltará, minha senhora! disse a velha mais que depressa e me fez entrar.
“Filomena, minha sogra, toda satisfeita, não por mim, mas pelo emprego, foi correndo acordar o filho querido, esquecendo que ele trabalhava ” a noite” e precisava repousar durante o dia”.
—Mauro!… Mauro, venha ver quem está aqui! Afinal ela voltou… Mauro, acorda, já é tarde!…
“Treze horas não era tão tarde assim, para quem trabalha de noite. Embora em minha casa, estava bem receosa, mas fui ao quarto ver meu marido, por insistência da sogra. Tinha dado por esquecido os tapas no rosto. Esperava, todavia, um melhor tratamento. Mauro, com muita dificuldade acordou mal-humorado.
—Que importava sua mulher? por isso não teve o menor escrúpulo em responder aos reclamos de sua mãe. Que veio fazer aqui, rabugenta de uma figa!… já não serve mais onde estava? pode voltar para lá; mulher melhor que você tem aos montes por ai! acho quantas quiser!.. “Fiquei perplexa. Mais uma vez minha sorte falhara naquela casa de triste memória. Para mim, foi outrora bofetada no rosto, pior da primeira. Agora não se tratava de um ato físico, mas moral. E minha sogra hipócrita, como sempre; onde estava o interesse de Mauro, me procurando? Procurei contornar mais uma vez a situação. Reconhecia minha condição de mulher casada com esse Mauro. Deveria haver um melhor entendimento, por mais adverso que fosse a sorte. For isso tentei com novos argumentos”.
—Mauro, estamos casados há mais de um ano. Somos jovens; não é possível que no início de nossa vida conjugal vejamos o mundo dessa maneira. Agora estou empregada num instituto de beleza e continuarei trabalhando para ajudar a casa. Afinal, como já havia prometido; precisamos pensar no futuro; mais alguns meses serei mãe, você um pai e que exemplo da remos ao nosso filho?
“A essa notícia minha sogra abraçou-me de alegria. Parecia compreender pela primeira vez”.
—Minha filha!… como estou contente! vou ser vovó. Ter um neto! Oh! Que alegria!
” Mauro não respondia nada. Preferiu ficar calado, porque viu sua mãe alegre. Levantou-se, foi até o quintal, lavou o rosto e com cara de animal veio até a mesa para aquele miserável lanche. Trocamos algumas palavras, mas tudo embaralhado. Depois saiu, para só voltar pela madrugada. Confesso, não gostei nada disso. Passei a noite em claro; minha agonia voltou-me a afligir. Logo pela manhã deixei meu marido na cama e fui trabalhar. Voltei a tarde. Assim passei alguns tempos. A vida em nada melhorava; meu marido, além de não ganhar nada, gastava meu dinheiro nos jogos noturnos. Vendo meu salário insuficiente, dobrei meus esforços e passei a trabalhar a noite num cinema, como bilheteira. Trabalhando dia e noite meu físico atrofiava, sobretudo pela gravidez, que já se fazia bem notado. Mesmo com o esforço que eu fazia, Mauro, cada vez mais vagabundo e malandro inveterado, ainda aproveitava para envenenar o espírito de sua mãe, contra sua esposa”.
—O que ela é, é uma hipócrita e sem vergonha! além disso o filho que traz não é meu! deve ser de amante dela, que lhe deu o emprego, em troca de amores baratos!
“Além de todos os defeitos, ainda era um sórdido cafajeste. Dependia pura e exclusivamente da esposa e ainda tinha a coragem de negar minha honestidade e mais, seu próprio filho. Sua mãe sempre na defesa do filho, passou a compreender que de fato sua nora era infiel. Assim voltou sua carga novamente contra minha pessoa, agora mais carrega da de ódio e com outros argumentos. Não podendo mais trabalhar devido a gravides, deixei os dois serviços e fiquei em casa. Mas o monstro da fome assaltou-nos bem cedo e os maus tratos de minha sogra também. Os atritos aumentaram tanto que um dia em pleno frio que se fazia, quando pela manhã, sem termos nada para um simples café e com a chegada de Mauro, vindo mais tarde nesse fatídico dia, houve uma violenta explosão; sogra, marido e eu nos misturamos em luta de corpo a corpo, além dos impropérios mais horrendo possíveis, acabei levando a pior, dadas minhas condições em que me encontrava. Novas bofetadas pelo rosto, socos e pontapés por outras partes do corpo e não podendo sofrer mais, bem como reagir contra dois monstros acabei saindo desesperada pelas ruas, antes que me matassem. Corri, corri e quando cansada passei a andar de um lado para outro completamente desorientada e indiferente aos transeuntes. Enfraquecida e sem a menor noção, ao transpor a calçada pisei em falso e levei um tombo. Com o choque desmaiei. Pessoas ali me socorreram transportando-me para o hospital das Clínicas. Socorrida, médica da e alimentada convenientemente, três dias depois deixei o hospital e com a ajuda de minha ex patroa regressei a casa de meus pais, que até então ignoravam minha sorte. Amparada novamente e restabelecida dos sofrimentos físicos e morais, tive uma linda criança. Passa de mais alguns tempos voltei a São Paulo, mas para trabalhar independente. Agora não tenho marido, nem sogra que me exploram. Deixei minha filha aos cuidados de meus pais e periodicamente venho visitá-los.
Odeio meu ex-marido pelos sofrimentos que me fez passar. Sei que ele me procura porque, após ter ficado preso por uns meses devido suas malandragens, vagabundeio e outros negócios escusos, reabilitou-se. Mas prefiro minha liberdade, como ela é. Trabalho, passeio e contribuo para a manutenção de minha filha Magnólia. Os sofrimentos que tive com eles levarão muito tempo para esquecê-los. As chagas causadas a mim ainda estão abertas e creio que levarão muito tempo para cicatrizá-las”.
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