UM GRITO NA MADRUGADA
Conto Francisco Piccirilo
Eram três horas da tarde de um sábado, numa grande cidade do interior provincial. O relógio da Catedral havia batido as pancadas, marcando mais uma parte daquele dia frio. Bem perto da igreja, Carlos saia de seu apartamento, deixando assassinada sua amante, por julgá-la infiel.
Como se nada tivesse acontecido, acendeu um cigarro e passou a andar pelas ruas, avenidas, praças, e vai e vem, ia fazendo horas, talvez para esquecer o crime, que acabara de cometer.
Moço bom, jovem ainda, com seus vinte e cinco anos, era contador chefe de um importante firma comercial, amigo de crianças, rapazes, moças e velhos; todos tinham nele um ótimo companheiro. No entanto, agora, com as mãos manchadas, ele, indiferente a todos, vagava pela cidade, indo até os bairros bem distantes.
Depois de muito andar, olhou seu relógio e muito longe o martelo do velho carrilhão bateu cinco pancadas. Carlos parecia ter passado dois séculos, mas os ponteiros acusavam apenas duas horas a mais. O sol já estava bem declinado e o frio ficando mais intenso.
Embora fosse um rapaz muito alegre e dado com as pessoas, seu lar, entretanto era isolado. Seria ciúmes de sua companheira? nunca comentou. Naquele apartamento somente os dois viviam, nem mesmo com os vizinhos se comunicavam de aí ser misterioso o crime cometido. Ninguém percebeu nada. La fora Carlos continuava vagando como filho prodigo. Fumava um cigarro atrás do outro, como verdadeiro inveterado.
Devido ao rigor do frio desse dia fatídico, poucas pessoas estavam transitando pela cidade e não notavam o aspecto que nessa altura começava transmudar o criminoso. Depois de tanto andar para baixo e para cima, descer e subir ladeiras íngremes, atravessar a cidade de um extremo a outro, sentiu desfalecerem suas forças e deitou-se na calçada, indiferente aos poucos transeuntes, a sociedade e até ao próprio mundo. Os guardas noturnos também não ligaram para aquele indigente, um bêbado qualquer; um normal jamais dormiria nessa situação.
Acostumado a boa vida, vivendo do melhor, morando em um apartamento, estava agora entregue ao relento, dormindo na rua sem um agasalho sequer. Porém, ainda que muito mal, Carlos dormiu bastante. A noite continuava fria e silenciosa; somente o apito dos soldados noturnos aqui e acola quebravam o silêncio.
O instrumento da Casa Divina, trabalhando normalmente, continuava marcando as horas e agora mais fortemente bateu doze pancadas fazendo Carlos acordar espantado. Embora tivesse ouvido o martelar do carrilhão, olhou-o para o seu e arregalou os olhos. Meia noite! Havia envelhecido muitos anos nessas poucas horas. Seu aspecto era desolador. No momento passou um guarda, cumprimentou-o e seguiu seu caminho; na esquina apitou a fim de cumprir as formalidades do serviço. Não havia nada de novo; nem mesmo aquele estranho elemento constitui novidade.
Com o corpo dolorido, parecendo ter levado uma surra, Carlos andou alguns passos com muita dificuldade e nesse instante lembrou seriamente de sua companheira. Veio-lhe o remorso e começou a contorcer-se, e como um desmiolado pronunciava palavras desconexas. Pela cabeça passavam-lhe celeremente uma série de lembranças dos bons tempos de namoro, aventuras e fuga até virem morar juntos. Ela era linda, esbelta e de cabelos longos. Tinha sido ” miss alegria” de sua cidade natal; estava ainda na flor da idade com dezoito anos aproximados. Daquele momento em diante, as horas começavam a voar como se fossem vento. O frio, ainda mais forte, pesava-lhe nas costas. O mau jeito da cama dura, nunca experimentado, aumentavam-lhe os sofrimentos. Foi andando pelas ruas sem rumo certo; o relógio bateu uma hora; dali há pouco duas horas; já era bem um domingo. Continuou andando de um lado para outro, balbuciando qualquer coisa que ninguém ouvia, nem tinha vivalma para ouvir. Longe, longe, o soldado da noite fazendo sua ronda, ora apitava, ora andava e, quando encontrava seus colegas de farda, trocavam opiniões.
O relógio da velha Catedral continuava trabalhando. O ponteiro maior já tinha transposto a parte baixa e começava a subir. * Dentro de Carlos o sangue frio fervia, embora externamente o corpo se congelava. Atravessou a avenida D. Pedro I, sentou-se no banco do jardim, esfregou as mãos, tentou acender um cigarro, mas não conseguiu. Levantou-se, atravessou a praça, alcançou a rua da Independência e quando já estava bem distante começou a delirar fortemente.
O corpo tremia. Um guarda escutou sua voz descontrolada, porém, perceptível e procurou segui- lo. Nesse momento, dava-se para entender suas palavras entrecortadas e cheias de soluços. Com passos curtos, envergando o corpo para frente, ia gritando:
—Eu matei fui eu que assassinei Porque Senhor, por que fui fazer isso? Por quê? Que direito me tinha sobre ela? Fui eu que insisti para morar comigo! Tirei a de sua casa onde estava tão bem com seus pais! Prometi casar e não cumpri a palavra; conservei-a mais como uma prisioneira onde estava com minha loucura, meus ciúmes?!
Não obstante o frio bem rigoroso, agora começava a suar, e o suor corria-lhe pelo rosto, misturando-se com a poeira da calçada, aumentando seu miserável estado físico, moral e espiritual. Até a roupa tinha-se estragado. Indiferente ao que se passava, outro guarda ao cruzar a rua, cumprindo seu trabalho, apitou fortemente. O apito entrou-lhe pelos ouvidos, assustando-o. O velho carrilhão deu as três marteladas. Carlos estremecendo de medo, de remorso e de frio, soltou um grito alucinante, que ecoou pela cidade. Desesperadamente gritava: —Fui eu que matei Sou eu o assassino! Prenda-me! Ela era inocente, era inocente….
Chorando e contorcendo-se, rolou pesadamente pela sarjeta de um bairro distante.
Os soldados, que estavam perto e escutaram seus gritos, correram apitando repetidamente, chamando outros colegas.
No momento exato das três horas, Carlos soltou esse grito, que ecoando pela madrugada, atravessando as ruas e avenidas, tentava checar aos ouvidos de Maria Lucia, como pedindo perdão, mas ela, surda aos seus gritos, jazia inerte dentro do apartamento. O crime fora vingado pela natureza, algumas horas depois. Quando os noturnos chegaram para prestar-lhe socorro, o criminoso já estava gelado. Duas mortes consumaram-se dentro de doze horas apenas. O povo, ignorando aquele espetáculo, continuava dormindo, protegido pelos homens do silencio.