ALMA DO OUTRO MUNDO

Conto Francisco Piccirilo

Em uma pequena localidade do interior paulista, ai pelo ano de 1924, existia um casal, que desde as bodas nupcial, nunca viveu bem.

D. Filomena, de cor branca, aparentando uns 18 anos, era muito boa, porém, João, marido dela, de cor quase escura, aparentando uns 30 anos, não gozava de boa reputação. Embora fosse homem trabalhador, devia sofrer de neurastenia, pois qualquer coisa de anormal, era motivo para fazê-lo entrar em briga com a companheira.

Suas brigas não eram somente físicas; pratos, xicaras e outros utensílios, acabavam sendo danificados em benefício dos fabricantes. Entretanto, o casal estava ficando cada vez mais pobre visto que, o marido não ganhava suficiente para cobrir seus próprios prejuízos. Os vizinhos tinham pena de D. Filomena, mas nada podiam fazer, pois qualquer intervenção ser-lhe-ia prejudicial.

Pouco tempo viveram na casa após o casamento. Não tendo mais nada e não podendo comprar, mudaram para outro prédio mais pobre ainda. A nova morada era uma casinha feita de madeiras, coberta de sapé com piso de chão batido. Triste situação de um casal ainda novo.

Descombinados na cor, na idade, no gênio, afastados dos vizinhos e amigos que infelizmente não tinham, aquele casal, estava condenado a viver isolado da sociedade. Maldiçoado pelo povo, o homem já estava no inferno mesmo em vida. Os moradores do pequeno lugar costumavam comentar.

—Esse homem, nem no inferno os demônios quererão.

Felizmente para a mulher, o marido viveu poucos anos depois do enlace matrimonial. E, embora não fosse estimado pelo pessoal, houve muitas pessoas no enterro. Quem sabe se aquilo era alegria de se livrarem de tão funesto homem. A mulher, que nunca saía, aquele dia acompanhou os restos mortais de seu algoz marido. Só assim pode ser vista pelas famílias da cidadezinha. Segundo o retrato de noivos, D. Filomena não mais era uma mulher; era um farrapo humano, que coberta com um pano preto e de cabeça baixa, acompanhou o cortejo fúnebre até a Cidade Santa.

Não tendo marido, filhos, parentes, propriedade, nada que a prendesse, D. Filomena arrumou seus trapos num pequeno embrulho, tomou no mesmo dia o trem e partiu para a cidade de seus pais. O lugarejo voltou a ter a tranquilidade de outrora. A casinha, isto é, o casebre ficou abandonado. Ninguém quis alugá-lo. O mato cresceu na frente, inclusive no quintal onde havia diversas arvores frutíferas; (laranja, lima, manga, goiaba, etc). O lugar ficou conhecido por “casa mal-assombrada”.

Após algum tempo, a maldição fora esquecida e as possibilidades de se colher as frutas aguçou o apetite dos meninos que sem ligar ao complexo do medo, trataram de apanhá-las.

Meus pais, por tradição, sempre possuíram uma cabra que, aliás, graças a ela, nunca faltou leite em casa, porém, a bicha de vez em quando costumava fugir e invadir os quintais alheios. Em uma dessas ocasiões, eu e meu irmão mais velho fomos procurá-la e quando demos com o animal, ela estava pastoreando folgadamente no terreno da casa abandonada.

Aproveitando sua calma, subimos a uma limeira quase próximo da cozinha. Dali alguns momentos, começou a chover cacos de pedras e meio tijolos e acabamos descendo da árvore nem sabemos de que maneira e nos enfiamos com cabra e tudo pelas cercas do vizinho, indo aos trancos e barrancos, caindo e se levantando sem saber de que modo, parar em casa quase sem fôlego. Era mais ou menos meio-dia numa sexta-feira.

É verdade que entre a arvore e a parede da casa havia um tapume de cerca viva(pinhão) e não pudemos divisar ninguém; mas as primeiras pedras nos fizeram lembrar da alma do seu João que poderia estar ali atropelando as crianças de seu quintal amaldiçoado.

Minha mãe ao ver-nos daquele jeito quis saber do acontecido e acabou dizendo:

—Bem-feito! Isso é para vocês aprenderem respeitar terreno de “casa mal-assombrada”.

Limeira março de 1963