DÍVIDA SE PAGA COM CHUMBO

Conto Francisco Piccirilo

—Roberto, você aqui também?

Essa foi a expressão de Artur, um dos viajantes que em diversas cidades por onde passou Roberto, sempre se encontram.

—Claro que estou aqui em carne е osso!

—Veio comprar, vender ou receber?

—As três coisas. Já estive no escritorio do Coronel Mauro Pacífico, na Fazenda Santa…

—Espere aí, atalhou o Artur. Você disse no escritório do Coronel Mauro?!

—Falei e realmente estive lá. Foi o primeiro freguês que visitei, antes de hospedar-me aqui. For sim, o Coronel é boa praga. Qual é o grilo?

Artur gaguejavas não podia acreditar, mas era verdade. Roberto esteve no escritório do Coronel Mauro.

 —E como você foi recebido?

—Muito bem, respondeu Roberto. A Secretaria não foi la muito gentil, embora seja uma garota muito bonita.

—Estou perguntando por que, segundo comentários por aí, o Coronel manda matar o cobrador, mas não paga ninguém. Você recebeu?

Ao ouvir isso, um frio correu pela espinha da cabeça aos pés de Roberto. O moço empalideceu, sentou-se na cadeira, abaixou a cabeça na mesa do refeitório e ficou ali uns bons minutos.

—Queira me desculpar, disse Artur tendo nas costas do colega. Pensei que você soubesse.

Momentos depois, com uma xícara de chá, Roberto voltou a si, mas não deixou de falar com seus botões.

—Se soubesse antes não teria ido. Não sou de brigas. E continuando suas reflexões acrescentou. —Não é à toa que me disse. Dívida se paga com chumbo, moço!

Naquele mesmo dia Roberto voltou ao Rio de Janeiro, para um bom descanso, só voltando a viajar um bom tempo depois.

Roberto Siqueira, após ser farmacêutico formado, seguindo ordem paterna, matriculou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Concluído o primeiro ano começou a sentir dificuldades no segundo. Seu professor Dr. Lopes aconselhou a fazer uma consulta em Campinas, no Estado de São Paulo.

Francamente é de se admirar que um estudante de medicina do Rio, cidade maravilhosa e importante centro de cultura, turismo, política e outros predicados, sendo farmacêutico e rodeado de professores ilustres, fosse aconselhado ir à Campinas, cidade interiorana, para consultar seus olhos.

Hoje Campinas é um centro de primeira grandeza em todos os sentidos, mas na época do jovem Roberto ainda não era. A cidade tinha bons profissionais e por isso já era famosa em todo o Brasil.

O acadêmico de medicina foi e procurou o médico indicado. Submetido a todos os exames necessários chegou-se a seguinte conclusão: O moço devia abandonar os estudos e trabalhar em serviços que não necessitasse firmar as vistas. Sua doença, infelizmente, era “Miopia Hiper Progressiva”.

Graças aos conhecimentos que tinha no Rio, não foi difícil arranjar emprego como ajudante com sua situação física. Roberto empregou-se como viajante, numa Companhia Importadora e Exportadora de Café. Sua primeira missão foi viajar pelos Estados de Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais.

A família de Roberto a princípio se opôs a esse emprego, mas o jovem, muito contente pelo serviço e sobretudo porque não precisava agarrar-se aos estudos, estava muito alegre e procurou tranquilizar seus pais, os quais aos poucos foram compreendendo. Pelo menos o rapaz não era vagabundo.

Um dos diretores da Companhia era goiano e particularmente chamou o jovem e deu-lhe este conselho.

–Roberto, quando entrar na casa de um goiano, tome muito cuidado com suas botas. Nunca deixe elas fora das calças. Procure sempre mantê-las por baixo, escondida. Infelizmente meus conterrâneos sentem-se ofendidos e poderão prejudicá-lo nos negócios. Nas ruas, não tem importância.

O moço agradeceu não só o Dr. Nemésio, como os demais companheiros já tarimbados. Viajar pelo Brasil, principalmente nesses Estados muito vis dos pela má fé doe brasileiros, era realmente uma aventura, mesmo porque, constituía sua primeira viagem. Nasceu e crescer no Rio de Janeiro. Conhecia palmo a palmo a cidade carioca, mas outros lugares não. Estivera em Campinas, mas o Estado de São Paulo sempre gozou de boa fama.

Preparado seus documentos, lista dos fazendeiros, comerciantes e industriais, Roberto seguiu viagem para Campo Grande. Visitou os fregueses e tudo foi maravilhoso. Enquanto esteve na cidade conheceu pessoas de negócios e colegas de viagens. Tomou conhecimento de diversos assuntos relativos à mesma. Campo Grande ainda não era a capital do novo estado de Mato Grosso do Sul, mas os cidadãos estavam trabalhando para isso com muito amor.

Resolvido os problemas, Roberto seguiu para Cuiabá. Sua viagem continuava muito boa. Muito calor, mas para um carioca acostumado ao calor forte da Guanabara, não era novidade. Cuiabá não oferecia os mesmos atrativos de Campo Grande, mas era a Capital e por isso alguns problemas de seus negócios deveriam ser resolvidos ali. a cada etapa de sua viagem, o moço despachava cor- respondência aos seus superiores. Tudo corria muito bem; de Cuiabá, Roberto, viajando de ônibus, partiu para Goiânia e não esquecendo as recomendações do Dr. Nemésio, procurou manter as botas sempre sob as pernas das calças, mesmo nas ruas. Uma boa política de amizade. Nessa cidade desenvolveu seus trabalhos da melhor maneira. Brasilia estava fervendo, isto é, estava começando a dar seus primeiros passos na construção.

Em Anápolis soube que a polícia encontrara um homem assassinado, porém, o crime deveria ter sido vingança, pois o morto tinha dinheiro nos bolsos, cartucheira com balas, revolver, relógio. Conclusão: não fora assaltado. Aliás, Roberto até que estava estranhando. Em todo o percurso já feito não vira e nem soubera dos casos tão comentados sobre esses Estados. Pura demagogia ou vontade de alguns cidadãos contarem prosa fiada.

A empreitada continuava muito bem na agenda de Roberto, o qual continuou visitando diversas cidades, conhecendo novos rumos, novas pessoas, novos colegas de viagens.

A Companhia em que o moço trabalhava estava muito satisfeita. Nunca outros viajantes, mesmo mais experimentados conseguiram resultados tão positivos. A própria direção já pensava em promovê-lo, tão logo regressasse.

Acertado os negócios em Goiás, Roberto, sempre viajando de trem ou de ônibus seguiu para Minas Gerais. Nesse Estado os negócios eram bem maiores e mais complexos também. Muitas cidades deveriam ser visitadas e para tanto começou pelas mais distantes. Ao chegar em Monte Claros, ao invés de se hospedar no hotel, foi direto ao escritório do Senhor Mauro Pacífico, que de pacífico não tinha nada. A Secretária atendeu-o muito secamente.

—Pode sentar-se aí. O Coronel ainda não chegou.

Roberto sentou-se. Não sabia que o homem era coronel. Apanhou um jornal e começou a ler, fazendo hora, é claro. Após meia hora de espera, o Coronel chegou e a Secretaria fê-lo entrar.

O aspecto do Coronel era bom. Moço, talvez uns quarenta anos de idade, simpático. Após os cumprimentos de praxe, Roberto foi logo só assunto.

—Coronel, trago aqui, embora contragosto, uma cobrança contra o presado amigo.

Uma boa política do jovem Siqueira era tratar todos de doutor ou prezado amigo.

Muito sorridente o acendendo um bom charuto,

inclusive oferecendo no visitando, o Coronel foi logo complementando a saudação.

—Prezado amigo! Ninguém falou de min o senhor?

—Positivamente, não! O senhor é a primeira pessoa que visito nesta progressiva cidade. De mais a mais, não costumo interrogar a vida de ninguém, principalmente dos clientes que visito. Acho que todos são cidadãos e…

–Pois fica o prezado amigo sabendo, que dívida eu só pago, mas é com chumbo…!

Para Roberto, tudo parecia brincadeira, embora notasse uma atitude bastante esquisita do Coronel. Afinal nunca houve dificuldade no tratamento com as de- mais pessoas já visitadas.

Brincadeira por brincadeira, Roberto tirou de suas botas um saca-café e mostrando energicamente ao Coronel foi dizendo.

—Se alguém atirar em mim e não acertar, bebo o sangue dele com este brinquedo!

—Que é isso amigo, parece nervoso!

Acontece que o Coronel não esperava do moço essa reação e acabou por acertar as contas com o viajante-cobrador.

One response to “DIVIDA SE PAGA COM CHUMBO”

  1. Luís Carlos Trento Avatar
    Luís Carlos Trento

    A imaginação do Francisco era muito fértil.
    Simplista e com grande capacidade de desenvolver os temas.

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