FARRAPO HUMANO
Conto Francisco Piccirilo
—Esta miséria não pode continuar assim!… Isto aqui não é mais vida!… Só mesmo pegando a trouxa e desaparecer por este mundo afora!… Deus não existe mesmo; se esistis se não deixaria a gente sofrer desta maneira!
Esses e outros monólogos, Pedro, um homem amadurecido pela idade, trabalho e a vida miserável que levava, ameaçava céu e terra em seu misero casebre, enquanto sua filha “Farrapo Humano”, mocinha de uns dezesseis anos de idade, sentada num caixão velho de madeira, toda esfarrapada, com seus cabelos longos cobrindo as costas e os seios; olhos voltados para o chão batido, ouvia silenciosa os gritos, pragas impropérios que seu pai, revoltado, soltava pela boca, sem nenhuma reação. Que poderia ela fazer? Ficara orfã de mãe e nem sabia qual era realmente seu nome e idade. Pai e filha moravam no rancho com mato por todos os lados e na frente e aos fundos, um grande rio, para diferenciar o lúgubre lugar. Viviam, como podiam.
Pedro pescava e depois atravessava o braço do rio e percorria alguns quilômetros para vender numa pequena cidade, o produto de seu trabalho, enquanto Farrapo ficava sozinha, cuidando dos afazeres domésticos da pobre cabana.
Conhecido por todos os moradores do lugarejo como Pedro Pescador, na realidade, Pedro era um homem fracassado. Quando se casou, já com seus trinta anos, trouxera a mulher para aquela ilha e continuou pescando. Achava que a profissão era suficiente para se viver. Mas vieram os filhos e a familia aumentara. Entretanto, os filhos morriam por doença, deficiências alimentares e outros males da região. Quando Farrapo Humano completou cinco anos, sua mãe, Assunta de Jesus, mulher franzina, morena, quando se casara teria uns quinze anos, embora sentisse que o local e o rendimento do marido não eram coisas plausíveis para uma família viver longe dos poucos recursos que a pequena cidade dispunha, achando-se gravemente enferma, faleceu antes de terminar com mais um parto.
Sentindo-se triste desde o primeiro acontecimento fúnebre de sua família, Pedro ficou tremendamente chocado com a perda irreparável de sua fiel companheira. Ela era, por pior que fosse a vida, seu farol. A morte da mulher causou-lhe profundo abatimento. Agora, viúvo e com uma filha de cinco anos, a única que conse guira sobreviver, não se sabe por que, veio aumentar os sofrimentos daquela pobre criatura. Pedro, desse dia, passou a levar uma vida des- controlada. Pescava e não pescava; as vezes caçava, para variar. Quando levava seus peixes a cidade, voltava na base da cachaça e deitava-se na rêde como um animal. Resmungava, blasfemava, levantava-se, batia estupidamente na filha, para se desabafar; depois chorava copiosamente como uma criança e implorava perdão; lastimava-se contra tudo e contra todos; parecia um semilouco.
Farrapo Humano, para não ficar nú, vestia uns trapos de pano, sendo por seu pai chamada de Farrapo. Quando ele adotou esse apelido, uma vez que o Registro Civil e muito menos a Igreja aceitariam esse nome, ela passou a se conhecer. Realmente seu verdadeiro nome não existia; nunca fora registrada e nem batiza da. Para a menina estava muito bom; tinha, pelo menos, um qualificativo, chamava-se Farrapo Humano. A menina nasceu e cresceu naquele ambi ente sem nunca conhecer outra coisa. Ela, coitada, pouco falava, pois não tinha com quem con versar. Imitava muito bem certos pássaros e alguns animais, A vida para aquelas criaturas caminhava de mal a pior; não havia a menor possibi- lidade de uma melhora, quer por parte de Pedro, que só sabia pescar e levar os peixes à cidade; quer por parte da menina, que não tinha nada a fazer. Os afazeres do lar pouco serviços lhe dava a menos que se embrenhasse pelo mato ou atra vessasse o grande rio, mas isso ela não fazia.
Passou por aquelas bandas um pequeno navio com alguns pescadores e caçadores e ao longe avistaram na praia um corpo de mulher. O dia estava frio e a visibilidade razoável. Julgaram, pelas aparências, fosse uma india e com os devidos cuidados aventuraram-se até a margem. Eram três, muito bem armados para pescаs е са- ças; poderiam se defender muito bem. A moça, com a presença daquele veículo e homens estranhos correu para dentro de seu casebre, mas não pode oferecer resistência a senha dos malfeitores, avidos de atos animalescos, quando perce- beram que se tratava de uma mulher indefesa. Ela tentou bravamente contra o bando, mas não pode vencer três monstros; o mais moço teria vinte e cinco anos e o mais velho, uns trinta e cinco anos de idade.
A estupidez, as vezes tornam os homens mais agressivos que os próprios animais. Assim, enquanto Pedro, na cidade vendia o fruto de seu trabalho, em sua casa de sapé, três homens saiam satisfeitos; tinham realizados uma boa caçada; tornaram-se pela primeira vez, caçadores de corpo humano, contra uma menina moça desprotegida.
Pela hora de costume Pedro regressou, mas estava bom aquele dia; não havia tomado nada. Viera pensando na vida; descobrir um jeito de resolver o problema de sua triste miséria. Sair dali e morar na cidade, para dar melhor ambiente à filha. Quando penetrou em sua cabana, encontrou um cadáver vivo. Reconheceu imediatamente a profundeza da desgraça causada à sua filha. Pedro tinha seus defeitos, mas sabia ser pai e o desespero tomou-lhe conta.
—Farrapo! gritou em alta voz, como um louco. Que lhe fizeram?!.. diga-me, conta a seu pai!.. quem foi esse maldito?!..
Com as mãos na cabeça, desesperado, batia e rebatia os pés; saia e entrava dentro da choupana; não sabia por quem apelar. Ao redor não havia nada; somente mato e água. A noite chegava tenebrosa e assustadoramente. A moça continuava quase sem vida, abandonada no chão batido, esvaindo sangue. Somente seus olhos semicerrados e os lábios movimentando vagarosa- mente, querendo contar alguma coisa, demonstrava um pouco de vida naquele trapo de gente.
Amargurados, tristes e doentes, pai e filha passaram, sob a luz de um lampião a que querosene, aquela noite fatídica. La fora, chuvas, ventos, relâmpagos e trovoadas bombardeavam o triste e desgraçado sítio com seus ocupantes. O grande rio, com os balanços de suas ondas, parecia arrasar o mísero casebre. Um pouco de orações, para lembrar os tempos em que Pedro frequentara o catecismo nesse momento ajudava vencer as tormentas funestas. Orando e velando a filha, a noite, com grande custo, passou, e com o clarear do dia já mais tranquilo, Pedro buscou no mato algumas ervas e raízes para os tratamentos caseiros muito comum entre os selvagens e brancos que vivem em contatos com a natureza. Sete dias depois a mocinha, com grande esforço, vencendo uma difícil batalha, conseguira levantar-se para alegria de seu pai sofredor.
—Foram três iguais a você, que passaram no rio! disse a moça com muita dificuldade.
—Malditos!… se eu pegar, faço picadinhos de cada um!… acabo com a raça de todos!…
Embora mostrasse uma disposição férrea naquele momento, para impressionar a menina, Pedro não faria nada. Sem ser comerciante, estava falido moral e financeiramente. Ia até a cidadezinha, vendia sua pescada e depois bebia em álcool o fruto de seu trabalho, pouco importando-se com sua filha no meio do mato, isolada de uma civilização, uma vez que ela nunca reclamou e nem sabia reclamar qualquer direito. Entretanto, se naquele desditoso dia Pedro, voltando à sua morada isento de bebida, pensava em mudar para melhor, agora com o mal causado à sua filha, trouxera-lhe mais um motivo; resolvera definitivamente mudar. Mas uma coisa parecia prendê-lo aquele misero lugar; sua mulher e filhos sepultados ao lado do casebre, constituía um pequeno cemitério. Como abandona-lo?!..
Farrapo Humano continuava não reclamando nada. La até o cemitério de sua mãe e irmãos; contemplava pacientemente os montes de terras e voltava. Vivia quase como um animal do mestiçado. Sentiu na própria carne as dores causadas pela estupidez humana, mas continuou vi- vendo pacatamente. Seu pai continuava preocupa- do com novos e possíveis acontecimentos, mas ainda não sabia como resolvê-los. Sobre a tragédia havidas com a menina não comunicara a ninguém. Assim passaram-se mais algumas semanas.
Pedro fora a cidade, como sempre costumava ir, contudo, desde o brutal estupro come tido contra sua Farrapo, seu coração pulsava mais forte e seu cérebro, por uma vingança. Isso o forçava voltar sempre mais cedo e cauteloso, pois esperava a qualquer momento encontrar em seu sítio os mesmos criminosos.
O dia estava muito bonito; Pedro foi a cidade, mas voltou cedo e quando se aproximava com sua canoa avistou um barco e da cabana saiam gritos de socorros. Pedro correu e com a espingarda deu pelo gatilho; os invasores ouvindo tiros fugiram, mas ele preparado, descarregou mais tiros matando um e ferindo outros que lograram fugir com o barco. Desta vez Pedro conseguira salvar Farrapo e vingar parte da desgraça causada a ela. O morto seria, pelo aspecto, o mais velho; os outros não conseguira conhecer.
A moça se refez do susto e chorou histericamente. Depois, sentado no banco de madeira e com seus olhos sempre voltados para o chão batido, ouvia seu pai praguejar, lamentar, blasfemar e protestar. Para ele não haveria mais sossego no terreno. Tinha que abandonar aquela ilha. A noite viera; o lampião a querosene clareava o pequeno cômodo; a espingarda carregada e pronta para qualquer emergência. Pedro ainda desconfiava de alguma surpresa. A noite passou, clareou novamente o dia e felizmente nada aconteceu.
Quase ao meio-dia um vapor apareceu com diversos passageiros. Pedro estava pescando e viu o barco se aproximar até perto de si. O desespero tomou conta da moça e ela desapareceu para dentro do casebre. No navio viera a Polícia para prender o assassino. Pedro conheceu a caravana; dois soldados, um escrivão, o delegado, o vigário e uma das vítimas, denunciam-te do ocorrido.
Esse homem atirou em mim, no Flamínio e matou o Juca!… disse logo a suposta vítima.
Pedro, tem alguma coisa a dizer, protestar, ou defender-se das acusações? perguntou o Delegado.
Pedro, tomado de emoção, ficou calado. Em nome da lei declaro criminoso e prendo-o pela morte de Joaquim e ferimentos graves em Flaminio e neste aqui, repetiu a autoridade policial.
A essa declaração, o Delegado mandou que os soldados prendessem Pedro, enquanto o Escrivão lavrava o termo de prisão em flagrante, com as testemunhas ali presentes.
Antonio Ponte Preta, o delator, era um rapaz de uns vinte e cinco anos de idade, com cabelos e barba grande, bastante corpulento e de estatura mediana. Estava vestido com roupa caqui, sem paletó e usava em seus pés um par de botas cano longo.
Quando os soldados iam pôr as mãos para efetuar a prisão, o sacerdote, que logo compreendera a situação, pediu licença ao Delegado e achou melhor conhecer a causa da denúncia.
Padre Inocêncio, homem acostumado com a vida do sertão, tinha uns cinquenta anos de idade. Viera da grande cidade logo após sua ordenação. Sentindo a necessidade espiritual, material e social do povo, nunca mais deixou a pobre paróquia, apenas grande em seu tamanho territorial. Num relance de observação notou a gravidade do que poderia ter acontecido e a honestidade do denunciado. Enquanto o Sacerdote procurava ouvir e conhecer a causa do crime, Antonio protestava contra a intromissão do bom Padre, demonstrando um nervosismo. Ia de um lado para outro; acendia cigarros um atras do outro; tirava o chapéu, enxugava o rosto e a cabeça com um lenço vermelho. Somente o Delegado e seus auxiliares permaneciam calmos conversando sobre diversos assuntos.
Ao chamar Pedro para dentro da casa, como se fosse ouvi-lo em confissão, foi advertido por Antonio, que insistiu.
—Padre Inocêncio, nós estávamos caçando aqui por perto, quando esse homem atirou estupidamente em mim e nos outros!
—Conheço muito bem você e já ouvi sua história! Precisamos agora ouvir também o denunciado, para que a Polícia não cometa erros sem mais nem menos. Nunca há uma causa sem motivos! continuou calmamente o bom representante de Cristo.
—Vamos Pedro, você sumiu de meus olhos e que vejo agora neste lugar? isto é vida de um cristão levar? pode ser pescador, como foi São Pedro; ser caçador, como foram outros santos, mas nenhum trabalho, por mais insignificante e humilde que seja rebaixa o homem a espécie selvagem!…;
Cabisbaixo, Pedro não respondia nada. Limitava somente em ouvir o sermão. Sabia o caminho da cidade, dos fregueses, do boteco, mas da igreja não sabia mais. Desde quando se casou e veio morar no mato, a beira do grande rio, parou de frequentar os ofícios religiosos; nem mesmo para batizar seus filhos, coisa tão comum entre os homens, para terem compadres, Pedro fizera. Seus filhos nasciam, morriam e eram sepultados ao lado do casebre.
—Pedro… insistiu o sacerdote com mais autoridade. O que você me responde?
A comitiva continuava calmamente esperando alguns resultados. Somente Antonio mantinha-se impaciente. A verdade deveria ser esclarecida ali mesmo, segundo as leis do sertão.
Mas Pedro continuava silencioso; não sabia como explicar a verdadeira causa da desgraça. Ele não foi contar a ninguém, muito menos à Polícia, entretanto, sua filha, além de sofrer as sevicias de alguns monstros, entre eles o denunciante, ali presente, esteve à beira da morte durante muito dias. Farrapo Humano, principal origem dessa desgraça, continuava escondida e amedrontada a um canto da misera casinha; cabeça baixa e olhos voltados para o chão batido, ouvia o diálogo entre o padre e seu pai, sem entender aquela linguagem. Ela queria contar, expor o que houve entre si e a defesa praticada por seu pai, para salvá-la, mas continuava lá dentro encurralada.
—Conte alguma coisa, Pedro, voltou o padre a insistir. Por que você matou o Joaquim e feriu os outros? Afinal, eles não podiam caçar aqui?
Pedro ia responder, mas saiu de dentro do rancho a verdadeira vítima, um farrapo de gente. Todos voltaram-se surpresos para aquele corpo semisselvagem, que se dirigia com muito acanhamento ao grupo. A moça, coitada, acostumada viver sozinha uma ilha, pouco sabem do se expressar, tremula por ver-se diante de um grupo de homens diferentes ao seu mundo, com a voz dificultosa, apontou ao sacerdote um de seus criminosos e contou em sua linguagem, o sucedido dias antes.
Diante de seu natural modéstia, o grupo, ao ouvir a narração melancólica da mocinha, volveu-se revoltado para o denunciante e o deteve, pois Antonio, ao ver a moça sair da casa tentou fugir desesperado.
—Eu desconfiava que a história não estava bem contada, dizia o velho sacerdote. Conheço os homens da cidade e do mato também, por isso fiz questão de acompanhar-vos nesta diligência; e dirigindo-se ao Delegado recomenda que Antonio, ali presente e João Flaminio fossem presos e julgados de acordo com o crime que praticaram na invasão de propriedade alheia, violação do lar e do crime sexual perpetrado numa menor. Pedro praticara um ato de legítima defesa em favor de sua filha e de seu lar, embora tão miserável, como era, e voltando-se para o homem disse-lhe. E quanto a você, meu filho, voltará para a cidade com sua filha; isto aqui não é lugar para vocês viverem!
Pai e filha foram para a cidade no mesmo navio. Farrapo Humano foi batizada e registrada, recebendo o nome de Maria das Dores, pelos sofrimentos recebidos durante aqueles anos no inferno verde do sertão. No local ficou um pequeno cemitério onde jaziam os restos mortais da esposa e filhos inocentes de Pedro Pescador.
Limeira 01 de agosto 1970.
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