O FIM TRISTE DE UM SONHO
Conto Francisco Piccirilo
Pequeno lugarejo, encravado no meio do Estado, em cujo lugar, tirando a vida agrícola de alguns fazendeiros que preferiam morar na Capital e lá gastar os lucros de suas propriedades rurais e alguns negociantes de beira de estradas, São Luís era lembrada somente por seus habitantes, quando se registravam explosões nas fábricas de fogos de artifícios, único ramo industrial que prosperava no lugar.
Seguro de vida e contra acidentes; férias; abono de Natal; horas extras; descanso remunerado; aposentadoria; fundo de garantia; proteção ao menor trabalhador e as senhoras, bem como o PIS e outras coisas mais, estavam em estados para aplicações remotíssimas. Quem morresse ia para o cemitério e os aleijados iam pedir esmolas. “Dura lex, sede lex”, para o pobre do trabalhador. Não havia lei alguma de amparo.
Explosão, é claro, que não existia todos os dias; ninguém iria trabalhar, mas o perigo rondava o operário diariamente. O mérito da explosão estava na sua grandeza; quanto mais vítimas fazia, mais importante era.
Lembro-me muito bem que certa vez, véspera de Quarta-Feira de Cinzas, quando começava o período quaresmal na igreja católica, o gerente da fábrica São Nicolau, homem incrédulo, antecipando a possível falta de seus auxiliares devotos, bradou em alta voz para a turma, qual comandante carrasco.
—Amanhã vamos trabalhar!
—Mas amanhã é o primeiro dia de quaresmal Dia de cinzas, bradou um dos empregados.
—Quaresma ou torresmo, tudo é igual, por isso vamos trabalhar e quem faltar ao serviço, três dias de gancho falou, está falado. Mas viram o espírito porco do homem? Comparou a quaresma com torresmo, embora o torresmo de porco seja um bom petisco.
De terça feira de carnaval nem se lembraram. Feriado não era mesmo e o povo do lugar preferia respeitar os santos do que o diabo, mas não adiantou nada. No outro dia o pessoal foi trabalhar. Era preferível, que perdê-lo. Afinal, no pagamento o dia perdido fazia falta. Mas o chefe, sempre rabugento, ao perfurar com uma agulha uma bomba de certo calibre, não observando as técnicas necessárias, viu-a explodir em suas mãos, diante de seus olhos estupefatos. Resultado, teve de ser conduzido à cidade mais próxima para um atendimento de urgência, infelizmente perdeu a mão e o emprego. Para o pessoal, aquilo foi Castigo.
Explosões, conforme dissemos, não eram frequentes, graças a Deus, mas quando aconteciam, o trabalhador ou trabalhadores ficavam marcados e marcados ficavam também suas famílias. Passado o desastre e São Luís tinha várias fábricas pequenas, médias; havia uma bem maior, a São Nicolau, voltava novamente a normalidade, até que outra explosão acontecesse. O povo esquecia facilmente o desastre e os industriários, que precisavam ganhar seu pão de todos os dias, também regressavam ao trabalho.
Quando garoto trabalhei na fábrica São Nicolau e sempre escutava o pessoal dizer que, se o depósito dessa indústria explodisse, a explosão abriria fendas nas ruas e tragaria a pequena
cidade. Valha-nos São Luis. Voz do Povo é a voz de Deus e por isso os acidentes não chegavam a serem tão desastrosos.
Havia em São Luis entre as famílias, uma outra, cujo chefe, de nome Jacinto, era tido por seus filhos como homem duro, severo, enérgico. Com ele não havia papo furado. Trabalhador, seguro de si mesmo, impunha uma certa dinastia à mulher e filhos. Trabalhava na fábrica São Nicolau com seus dois filhos: Leonor, moça de vinte anos mais ou menos e João, conhecido por Joãozinho, regulando quinze.
A fábrica São Nicolau, de Lusardo Batista, ficava um pouco distanciada do centro do lugarejo e a mesma, mais distante una quinhentos metros, possui outra, bem menor, ocupando um prédio que fora antigamente sede de um grande e prospero sitio. Ali operava um grupo de homens, senhoras e menores, inclusive Leonor e Joãozinho, dirigidos por Pedro Vaques.
A casa adaptada, como fora, para uma pequena indústria, tinha de tudo o que ora necessário a um trabalho contínuo. Além de matéria prima, possui mesas, bancos, ferramentas e outras miudezas. Pregado nos batentes das janelas ficavam os pregos sem cabeças, com que os oficiais rançavam os barbantes encerrando-os com coras apícolas.
Estava eu no grupo escolar e nessa época devia ter meus oitos anos de idade. Eu trabalhava no período da tarde, segundo permissão da gerência. Na escola, entre os colegas mantinha boas relações com o Levizinho, derivativo de Levi, que era filho de Luzardo. As dez horas, a sineta tocou anunciando o intervalo escolar, tão esperado. Saímos e enquanto tomávamos o lanche e brincávamos no pátio ouvimos um enorme estouro. Era uma das explosões, que pelo ruido, parecia maior que as normais. O Levizinho, encostando-se na parede começou a chorar copiosamente. Não sei se era por piedade dos possíveis desgraçados ou pelos prejuízos que seu pai teria. O Diretor do Grupo Escolar nem esperou completar a meia hora de descanso. Determinou o regresso as classes, para evitar desesperos e comentários. A maioria dos alunos tinham pais, irmãos, tios e outros * parentes nas fábricas. Eu tinha meu pai e como minha mãe sofria ao escutar o estalar de um bombinha qualquer. Os alunos, ainda que menores, sabiam, pelo costume e tradição avaliar os efeitos de um estampido.
Ao regressar da escola ao meio-dia, notei que na casa de Jacinto havia um movimento de gente. Mas o pior eram os gritos e gemidos nada comuns naquela residência. Soube depois que Leonor estava gravemente queimada e Joãozinho, inerte em cima da mesa, estava morto. Um tijolo atingira-o no lado direito, na altura dos rins, além das graves queimaduras recebidas o que lhe foi muito fatal.
Pai, mãe, parentes, vizinhos e até o patrão ficaram sensibilizados com o terrível acidente. Leonor, variando talvez, pelas fortes queimaduras recebidas e sem os socorros de urgências que deveria ter recebido, não cansava de repetir aos consulentes, o sonho trágico que seu irmão tivera durante a noite. Porque ouviu e não o impedira de trabalhar pelo temor de seu pai, considerava-se culpada e criminosa. O remorso doía-lhe mais que as queimaduras recebidas no rosto, mãos e outras partes do corpo, quando tentara salvar Joãozinho, que preso, debatia-se para escapar do violento incêndio e estilhaços que pipocavam por todos os lados. As paredes da casa fenderam-se e a maioria dos empregados com menos ou mais gravidades, saíram queimados e machucados do serviço. Também Pedro, o mestre, saiu bastante ferido ac tentar salvar seu pequeno auxiliar. Durante a * explosão e o alastrar do fogo pelos cômodos da casa, só se ouviam gritos misturados com os estampidos das bombas.
Joãozinho era um rapaz esperto, inteligente, obediente, brincalhão, trabalhador, consciente de sua responsabilidade. Seus amigos o apreciavam e os vizinhos o estimavam muito. Todo trabalho o chefe e seus colegas não tinham nada a reclamar dele. Mas naquele dia fatídico Joãozinho estava triste já pela manhã. Dormira mal e tivera um sonho, que não foi sonho e sim, um terrível pesadelo. Porque estava triste e acabrunhado, sua irmã Leonor o interpelou:
—Que há Joãozinho. Não dormiu bem esta noite?
João preferiu não falar nada. Contar o quê! Um pesadelo? Deixar mais gente preocupado?!
—Vamos João, fale alguma coisa! Viu algum fantasma?!
Diante da insistência de sua irmã, Joãozinho contou seu sonho e o pior, vira mais que um fantasma, vira sua própria morte. A irmã ficou horrorizada, mas lembrando que seu pai não perdoaria, aconselhou o irmão a não comentar nada. O pai iria dar-lhe uma boa sova de chicote e ia tratá-lo de vagabundo. Demais, era um sonho e sonho não faz sentido.
Ambos foram para o serviço, o qual começava as sete horas. O trabalho desenrolava-se normalmente, mesmo porque, as palavras “CUIDADO PERIGO” estavam na frente de cada operário e por todos os cantos da fábrica. Que o serviço era perigoso, ninguém duvidava. Todos trabalhavam com a máxima atenção. Mas as dez horas, sem que qualquer pessoa visse surgiu inesperadamente o terrível fantasma devorador de vidas preciosas e quando deram pela fatal tragédia, o fogo já estava alcançando os lugares mais perigosos. Maria, uma das operárias deu o alarme e saiu correndo para fora. Pedro, reconhecendo o alcance do desastre e imitando um comandante de navio naufragando gritou para que todos abandonasse o local. Somente Joãozinho estava no pior lugar, atras de uma grande mesa, encostado na parede e todos os lados atravancados por bombas, caixotes, amos João, fale alguma coisa! Viu algum fantasma?!
Diante da insistência de sua irmã, Joãozinho contou seu sonho e o pior, vira mais que um fantasma, vira sua própria morte. A irmã ficou horrorizada, mas lembrando que seu pai não perdoaria, aconselhou o irmão a não comentar nada. O pai iria dar-lhe uma boa sova de chicote e ia tratá-lo de vagabundo. Demais, era um sonho e sonho não faz sentido.
Ao fazermos nosso intervalo no grupo escolar, ouvimos o estouro do canhão, termo que o povo usava para comparar o volume do estampido de uma explosão maior. Pedro e Leonor não puderam salvar Joãozinho e ainda se queimaram muito.
Jacinto, a um canto da casa, escutava sua filha narrar a desgraça prevista pelo irmão.
Parecia que ela falava mais para provocar um remorso em seu pai. Mas, seria evitada a explosão a pequena fábrica se Joãozinho não tivesse ido trabalhar? Claro que não! Não foi ele que causou acidente. Ele teria poupado sua vida, mas as comadres costumam dizer que é o destino. Joãozinho poderia não ter morrido na fábrica, mas morreria no rio, na rua, dentro de casa; é o destino.
João Pagou com a vida, o fruto de seu próprio sonho.
Limeira abril de 1970
Leave a Reply