OS MLAGRES DE SÃO FERDINANDO
Conto Francisco Piccirilo
Ferdinando residia numa pequena aldeia, ao pé do morro do sol, vale do Ribeirão Azul. Era um menino franzino, pernas longas, cabeça miúda. Seu olhar inspirava compaixão. Obediente, trabalhador, atencioso, servia, a troco de um café, almoço, jantar ou qualquer coisa semelhante, contanto que não ficasse com seu estômago vazio, qualquer pessoa que solicitasse seus préstimos, inclusive o Vigário de Pôrto Seco, quando vinha, aos domingos e dias santos, celebrar a Santa Missa e outros ofícios religiosos.
Pais ele não tinha, pois quando nasceu, sua mãe morrera, vítima do parto; seu pai havia falecido bem antes dele nascer. Assim Ferdinando, vivia com sua vovó materna, já bem velhinha.
Dona Leocádia, muito devota de Santa Luzia, padroeira da pequena aldeia de Santa Luzia do Sapé, ficara viúva, após muitos anos de casada sem ter filhos. Passados alguns anos casou-se com Leopoldo Serra, de quem teve uma filha, Maria de Lourdes, que com dezesseis anos de idade contraíra matrimônio com Vivaldo Guerra, de cujo casamento nasceu Ferdinando, num dia muito chuvoso.
Vivendo uma vida muito simples no povoado, Leocádia pouco se dava ao luxo das boas ou más notícias recebidas das pequenas cidades, distante une trinta quilômetros. Ficara viúva duas vezes, por fim perdera sua única filha, bem como seu genro e ainda, com a responsabilidade de criar seu neto recém-nascido. Para ela, a criança cresceu mais por sorte, do que tratamento e cuidados, a não ser os poucos auxílios prestados por vizinhos, que procuravam atender algumas necessidades da velha d seu neto.
A maior lavoura do povoado era ovina, havendo também bastante caprinos e Leocádia, quando moça, esperta e bonita, muito lidou com a referida lavoura, mas ficando velha e sem recursos devido a ingratidão da sorte, em nada mais podia contribuir para sua manutenção, daí sua ineficiência em atender aos reclamos vitais da criança.
Com seus dez anos de idade, ainda analfabeto, Ferdinando ia pelas casas dos vizinhos, pelos sítios e campinas, brincava no rio Azul, passava o dia fora e só voltava ao escurecer, para dormir. Sua avó pouco reclamava, uma vez que ficar em casa não ficava mesmo e ela infelizmente não tinha forças para detê-lo. Assim o menino vivia num lugar pobre e sem futuro.
Embora não se interessasse por atividade alguma, quando Antonio, o ferreiro, seu Mané, da venda, Luís, o barbeiro e outros profissionais perguntavam ao menino o que ele ia ser quando fosse homem, respondia rapidamente.
—Vou ser santo; São Ferdinando! vou fazer muitos milagres!
Não tendo o menor escrúpulo perante o menino ingênuo, pois eram homens rudes e semianalfabetos, zombavam e riam gostosamente no rosto do garoto. Ferdinando, nenhuma atenção dava às zombarias; as vezes ria também achando graça de sua própria ingenuidade. Entretanto, ninguém, entre os homens se preocupava em dar-lhe uma educação, por mais simples que fosse.
Ferdinando, cada vez mais magro, mais franzino à medida que crescia em tamanho e diminui na inteligência, ia ficando mais boêmio; mais diferente. Emprego fixo ninguém lhe proporcionava e ele não pretendia tê-lo. Sua vontade era ir de um lado a outro, brincar, nadar, subir morros e distrair-se à vontade.
Albertina, mulher de seu Mané, queria o menino no armazém, mas ele não ficava; Antonio, várias vezes fez o mesmo em sua oficina de ferreiro, mas o ofício não lhe interessava; assim outros homens tentaram, pois Ferdinando era atencioso e bonzinho, mas sua inclinação maior consistia contemplar os pássaros que voavam e os animais que pastoreavam livremente nos campos.
Uma bela manhã, após violenta tempestade caída durante a tarde do dia anterior, cujo rio Azul se tornara grande, passeando pelas campinas frias, Ferdinando achou no chão a beira do rio a imagem de um santo. Não sabia o nome, mas soube distingui-la. Alguém deveria tê-la perdida ou jogada fora e as águas trouxeram-na aquele campo. O menino ergueu-a com toda a veneração e guardou-a numa pequena gruta na montanha. Desde esse dia procurava sempre visitá-la com todo o respeito e devoção. Levava sempre uma flor colhida no campo; passava alguns momentos ali e depois regressava para o lugarejo, sem comentar com os moradores de sua aldeia.
Bem velhinha, doente e quase cega, Leocádia, desse dia em diante passou a sentir melhoras em seus olhos e recuperar as forças. Estaria a imagem, pela intercessão de seu neto, operando milagres? Os moradores notaram o fenômeno da velhinha que, embora beneficiada, não mostrava nenhum entusiasmo. Era até uma falta para com Deus e sua padroeira Santa Luzia. Quando os homens comentavam com Ferdinando sobre os progressos de sua avó, respondia com toda piedade.
—Meu santo está curando. Ela vai ficar boa outra vez!
—Que santo! perguntaram os homens interessados em milagres.
Ferdinando não conseguia revelar. Ao pronunciar as palavras, qualquer coisa embargavas-lhe a voz e ele saia do lugar correndo, como um envergonhado.
Daquele dia em diante os homens, quando reunidos no botequim do Joaquim, faziam os mais variados comentários sem chegarem a uma conclusão. Discutiam o que poderia estar influindo na vida do garoto.
—E ‘verdade! comentava o alfaiate; agora me lembro; ele sempre dizia que ia ser santo!
—Qual santo, qual diabo! respondia o Heins, pequeno criador de ovinos, e bastante incrédulo. Que tem ele de importante para ser santo! um pobre diabo, que vive sem trabalho e à cata de qualquer coisa aqui e ali, para não morrer de fome. Afinal, o fato de Leocádia estar melhor nada difere! Quem não morre de velho, acaba voltando-lhe a mocidade!
As mulheres, mais crédulas e vaidosas, lavando roupas no rio, também faziam suas tagarelices. Entretanto, Ferdinando continuava sua vidinha de sempre, deixando o povoado mais intranquilo. Ora ajudava o negociante, ora o ferreiro; atendia chamados; auxiliava o vigário e tudo o que ganhava, quando lhe pagavam, levava à sua boa vovozinha.
Por muito tempo viveu Ferdinando naquela pacatez servindo homens, senhoras e quando acontecia de alguém ficar com dor de cabeça, dor no estômago, mau jeito e outras enfermidades comuns, ele prometia interceder junto de seu santo pela melhoria do enfermo. Isso tornou-se tão comum que nem mais ligavam pelas ofertas do pobre menino.
Dona Teresa, após ter lavado suas roupas no rio, estava estendendo-as no quintal. Nesse momento, sem saber por que, um touro furioso vindo da rua, rebentando carcas, através sou pelo quintal e saiu por outra parte do terreno fazendo estragos sem contas. A mulher, que não esperava por aquela funesta surpresa, deu um grande grito de desespero, ouvido a grande distância e caiu desmaiada. Seus vizinhos mais próximos correram em auxílio e a lá varam para o quarto. Estando grávida de alguns meses, o choque foi tremendo e o mal aumentava com os minutos que passavam. O médico mais próximo estava bem longe e o lugar de pouco recursos. Teresa, decorrido dois dias, continuava com seu mal agravando. Ferdinando foi visitá-la, pois a senhora sempre foi muito boa para ele e ao vê-la debatendo-se na cama com muita febre exclamou.
—Vou falar com meu santo agora mesmo. Ele vai fazê-la sarar; ela vai ficar boa outra vez.
As mulheres escutaram o menino pronunciar aquelas palavras, mas preocupadas com a doença da colega, que se agravava, nem prestaram atenção no garoto. Decidido retirou-se da casa e se dirigiu à imagem guardada na montanha.
Passando pelo campo, Ferdinando apanhou uma flor silvestre, símbolo de sua pureza, depositou nos pés da imagem e suplicou suave- mente.
—Meu Santo querido! Dona Teresa está muito doente! Ela não pode morrer!… Dona Benta, dona Chiquinha, dona Lucinda estão lá ajudando, mas não podem fazê-la ficar boa!… A seguir fez mais algumas orações e preces ao seu modo e voltou para a casa da enferma. Enquanto voltava, Teresa experimentava as primeiras melhoras. Ao chegar no quanto da paciente, ela apresentava boa disposição. Benta, vendo o menino se aproximar exclamou desesperadamente.
—Menino fuma figa, onde se meteste?! não viu que a gente precisava de você aqui para alguma coisa?!
–Eu fui pedir ao meu santo para ela sarar! não vê que ela está bem melhor!
As mulheres olharam-se uma as outras e lembraram-se dos comentários havido antes sobre dona Leocádia e de outras pessoas. Benzeram-se ali mesmo diante do menino e continuaram seus trabalhos de chás e escalda-pés na doente.
Amanhecendo o terceiro dia, Teresa estava novamente boa, embora muito fraca. Os cochichos sobre o menino aumentaram ainda mais. Na venda, botequim, barbearia; apenas havia uma dúvida entre o pessoal. Milagres, que eles sabiam, eram curas instantâneas, enquanto a dona Leocádia, Teresa e outros processarem-se durante dias. Mas foi notado que a partir da declaração de Ferdinando, ambas se curaram. Milagres ou coincidências!…
Passaram-se muitos meses. E ninguém mais se lembraram dos milagres, nem tão pouco do santo de Ferdinando. Mas o menino, além de prestar os favores normalmente as pessoas, continuava visitando a gruta e levando flores ao Santo e orando pela paz e felicidade do povo.
Santa Luzia do Sopé continuava sua vida de aldeia. Nada inspirava de importante para que se tornasse uma vila e mais tarde uma cidade. Mas o progresso não para e muitas vezes, quando menos se espera, ele surge, bate à porta do lugar. Assim chegou a vez da pequena aldeia, que certo dia viu um industrial se estabelecer nas redondezas das montanhas, onde Ferdinando guardava santamente sua imagem, para explorar cascalho.
Fazia muito dias que Ferdinando tinha-se adoentado e não pudera ir até as rochas; ninguém comentara o aparecimento da empresa. Mas quando a companhia inaugurou suas atividades com a primeira explosão, Ferdinando, ao ou vir o grande estouro, levantou-se de sua miséria cama e mesmo com febre alta correu, como que impulsionado, para salvar sua veneranda imagem. Leocádia, velha como era, não teve forças para impedir o menino, que correndo como um louco foi em direção a gruta. Ferdinando não ouvia nada, estava completamente descontrolado, mas uma coisa misteriosa o guiava na direção da gruta. Ao chegar perto do lugar um guarda o embargou, pois o lugar era perigoso, além disso nova explosão iria ocorrer.
Não podendo passar por ali, Ferdinando procurou outros pontos e burlando vigia do pessoal conseguiu chegar até a gruta de seu santo. Felizmente a imagem estava intacta, mas achou que o lugar não era melhor para guardá-la e quando ia saindo, nova explosão ocorreu.
Leocádia, não podendo segurar seu neto gritou por socorro. Homens e mulheres saíram em direção da montanha e quando chegaram perto da sede da companhia exploradora foram advertidos e impedidos pelos guardas de não passarem além do perímetro permitido. Mas os protestos da massa chamaram a atenção do gerente, que ouvindo os reclamos viera inteirar-se do acontecimento.
—Viemos buscar o menino que está na gruta, ai na montanha! adiantou Benedito, o carpinteiro.
—Mas que menino! disse o gerente. Aqui é proibido a presença de estranhos, principalmente de crianças!
—Proibido ou não, Ferdinando está aí, reclamou com mais insistência Antonio. Ele costumava vir todos os dias aqui e não vamos embora sem o levarmos.
—Mas aqui é perigoso! insistiu o homem, não posso deixar ninguém passar. Afinal, perguntou ao guarda. Você deixou alguém passar por aqui?
—Um garoto esteve aqui, respondeu amedrontado o vigia, mas eu o mandei embora e ele desapareceu daqui.
—Estão vendo! insistia e gerente. Aqui ninguém pode entrar!
—O menino está aí e não vamos embora enquanto não o levarmos! gritava o ferreiro, mais corpulento e corajoso. Como é pessoal vamos invadir o terreno?
Nesse instante a coisa começava a ferver. Diante disso o gerente suspendeu os trabalhos e permitiu que ambos procurassem o menino, mandando que seus auxiliares vistorias sem também o terreno. Ao se aproximarem da gruta o ferreiro e outros que estavam juntos viram Ferdinando com a imagem agarrada no peito, ainda com vida, estendido no chão.
—Ei pessoal!… gritou o homem, venham aqui! Ferdinando está aqui!…
Todos correram e ficaram impressionados. O gerente protestava contra a intromissão do pequeno; por isso havia placas e guar das devido os perigos. Mané, o que mais zombava do garoto, chorava, como criança. Teresa, reconhecida pelo milagre de sua cura, avançou entre as pessoas e tentou carregá-lo em seu colo, mas seu marido não a deixou; ele mesmo tomou em seus braços. Ferdinando, agarrando mais forte a imagem, volveu seu olhar suplicante as pessoas ali presentes e após um suspiro profundo, sem dizer palavra alguma, faleceu. Querendo salvar sua querida imagem, não conseguiu salvar sua própria vida. A imagem, porém, estava salva, protegida pelo seu esquálido corpinho, que apresentava graves ferimentos devidos as pedras caldas sobre seu corpo, quando houve a explosão.
O quadro foi horrível. Teresa, mais una vez reconhecida pela saúde recuperada, graças as preces do medianeiro, extasiada, proclamou em alta vos.
—Esse menino é um santo! E todos ali presentes, dominados pela emoção, também gritaram.
—Ele é um Santo! ele é Santo!…. O gerente, muito contrafeito, suspendeu os trabalhos e todos, povo e trabalhadores pegaram o menino com cuidado e em procissão, cantando e louvando a Deus, conduziram o morto para a capelinha. Passaram o resto do dia e a noite em orações até o outro dia, quando pela manhã sepultaram-no. Presente estava o Vigário, que viera da cidade celebrar os ofícios religiosos. Ao descer os restos mortais no campo santo, não faltaram os discursos dos oradores; ambos procuraram enaltecer as virtudes heroicas do pequeno mártir.
“Santa Luzia do Sopé ganhou um Santo!” proclamação eufórica do povo simples ao saírem do cemitério. Somente junto ao monte de terras, com muitas flores e velas ao lado, ficara uma velhinha, já bastante martirizada em sua longa existência, chorando a morte trágica de seu netinho. Quando o bonito dia terminava com a descida do sol no horizonte formando aquele crepúsculo vermelho azul, também Leocádia terminava sua longa vida neste mundo ingrato, acompanhando em espírito, espírito de seu último descendente, Ferdinando Guerra.
Limeira, 25 de julho de 1.970
Leave a Reply