OS MILAGRE DE SÃO VICENTE

Conto Francisco Piccirilo

Dormindo nas cadeiras da pequena sala, numa humilde casa sita a Rua Estrela Cadente nº 20, estavam João, Manoela, Otavio, Vicente, Lisete, Rosália, clemente e Madalena, avos, tios, primos e padrinhos do moribundo, além de alguns vizinhos. Junto à cama do agonizante, sua noiva, seu pai Carmine, além de Pedro, seu irmão, aguardavam os últimos momentos fatais.

Como a família era muito devota de São Vicente, dona Luísa havia feito uma novena em louvor no Santo. Ela continuava agarrada às orações.

A cidade era pequena e sem recursos e pobres eram os familiares. Os moradores, imigrantes italianos, faziam algum tempo que haviam chegados.

Naquela noite fúnebre, quando o jovem Romeu estava agonizando, dona Luiza tirou o quadro do Santo o qual estava dependurado na parede, colocou-o no chão e à sua frente acendeu duas velas bentas, não mais pela cura do enfermo, pois Romeu agonizava, mas pela sua alma, a fim de que Deus, em sua infinita bondade, a recebesse bem, uma vez que os criminosos da terra não receberam o castigo devido. Que a alma pura do rapaz voasse direta para o céu.

A esperança, a fé, a virtude e a forte devoção enfim, tudo o que fosse para o bem do doente e tranquilidade da família Malacacheta, foram feitos. Romeu era um moço trabalhador, simpático para todos um verdadeiro romeu para as poucas jovens que havia na cidade, não merecia um fim daquele jeito.

Naquele momento difícil para os familiares aceitarem a vontade Divina, inesperadamente, um sono profundo enviado aos presentes. A casa, por um bom tempo ficou silenciosa, só as velas clareavam o quarto. Romeu, que não conseguia abrir os olhos, apenas gemia ofegante, parou de gemer, levantou, com certo esforço, o corpo, sentou-se na pequena cama e arregalou suas pupilas para ver que à sua frente estava um moço bem-vestido trajando roupas celestiais, cujo esplendor clareou seu cômodo. O Mensageiro fez-lhe um sinal para que ficasse quieto e com um gesto miraculoso fez aparecer três torneiras nas paredes. Tomou um copo com água da primeira e deu ao moribundo. Este, com muita dificuldade bebeu gole a gole; o Mensageiro tomou o copo e encheu-o de água da segunda e deu ao doente, este já bebeu mais à vontade e quando foi dado o líquido da terceira, Romeu já estava sentado na cama com os pés no chão, completamente curado.

Terminado o milagre, o Enviado disse ao moço.

—-Deus Ouviu as preces e sacrifícios de sua mãe e mandou-me para curá-lo. Agora que você está bom, que ela cumpra o resto das promessas! E desapareceu Desaparecendo do quarto tudo se escureceu novamente, mas lá fora o astro Rei já estava aparecendo com seus primeiros raios solares e os dorminhocos foram acordando com o cantar dos galos das vizinhanças. pai de Romeu só sabia pronunciar.

—-Milagre! Milagre!! Milagre!!!

As velas no chão tinham-se esgotadas, só ficou o quadro, o qual dona Luiza com os olhos cheios de lágrimas motivados realmente pelo milagre, abraçava-o e o beijava, mais que seu próprio filho, colocando-o depois provisoriamente em cima de uma tosca cômoda. Carmine abraçava e beijava desesperadamente seu filho, como são os italianos. Os amigos, parentes, padrinhos e os demais ali presentes queriam também o abraçar, mas parecia que o pai não deixava de tanta alegria e ciúme. Condessa, sua noiva, não sabia como abraçar e beijar seu noivo. Os vizinhos, parentes, todos estavam felizes pelo acontecimento e pela cura inesperada e provada, só os adversários, os invejosos e quase criminosos, os quais também espreitavam, não gostaram.

—Criminosos! Por que criminosos? Qual a razão dessa hedionda tentativa com o bom rapaz que não tinha inimigos?

Quando a família de carmine viera morar no povoado de Benvindo, Romeu passou a namorar discretamente a jovem Magnólia, conhecida por Condessa.

Magnólia era uma moça muito linda e com seus vinte e seis anos de idade, cabelos longos e loiros, seios robustos, cintura média, estatura e forma de corpo bem-dotado, muito cobiçada pelos rapazes do lugar os quais queriam namorá-la, mas que ela não ligava ou não queria, sabe lá os caprichos das mulheres, além disso Condessa era filha única de um grande fazendeiro no município, mais uma razão para os cobiçosos. Ambos moravam modestamente na pequena cidade.

Em um determinado domingo quando os moradores foram à capela de Santo Antonio assistirem à Santa Missa, batizados e casamento, uma vez que ali não era muito comum essas cerimônias religiosas, Romeu viu Condessa e esta, com muita razão viu Romeu.

Se Condessa se chamasse Julieta, estaria havendo uma perfeita réplica de “Romeu e Julieta”, segundo Shakespeare, mas ela era simplesmente Magnólia, aliás, um nome muito bonito, embora incomum. Entretanto, houve um começo de romance, os dois se avistaram pela primeira vez e aquele “um de cupido” penetrou nos corações dos jovens.

A princípio, é claro, ambos se comportaram como desconhecidos. Houve a Missa, depois o casamento de João Matogrosso com Rosa Eurípides, logo a seguir os batizados dos pequenos Leonel, Rodrigo e Isabel, terminando assim os atos religiosos realizados por Frei Agostinho.

Cipriano, um dos rapazes interessados em Condessa percebeu que houve um olhar à primeira vista entre Magnólia e Romeu e não gostou nada disso e nem podia gostar, pois ele era um dos que tentava conquistá-la. E por que iria Condessa se interessar logo pelo rapaz ainda novato na pequena cidade? Nem sabia quem era, o que fazia, qual a família?

Eu diria que o amor à primeira vista não se interessa por esses detalhes, depois sim. A moça vê que o homem não faz seu gênero, o moço também percebe qualquer coisa e que o casamento não vai dar certo e desiste em tempo, mas o outro não e agarra com afinco e faz de tudo para não perder a parada. Era isso que alguns dos moços de bem-vindo insistiam em conquistar Condessa, a qual não se interessava amar ninguém. Ela dizia as suas amigas mais íntimas que não ligava ao casamento, entretanto seu pai a prevenia de que convinha encontrar um bom moço e fazer um ótimo casório, visto ser um grande empresário e precisava deixar seus bens aos herdeiros. Viúvo e com filha única, suas ambições criavam-lhes sérias preocupações. Carmine, pai de Romeu era carpinteiro, Romeu, ferreiro, seu irmão Pedro, pedreiro e todos trabalhavam na fazenda de João de Oliveira e Silva, pai de Condessa.

João de Oliveira nessa época estava melhorando os bens imóveis de sua fazenda. Cercando o gado, construindo paios, celeiros, represa, casas para empregados e com isso necessitava de profissionais competentes. Para lidar com o gado, café e cereais, seus empregados moravam em toscas cabanas ou no povoado. Oliveira e Silva era um fazendeiro muito humano e progressista. Quando adquiriu a propriedade Santa Maria, só havia mato, capinzal e muitas saúvas. Logo que assumiu o controle ajustou alguns empregados e peões e com eles se pôs à campo. Pagava bons salários e os trabalhadores muito o apreciavam. À medida que colhia e colocava no mercado, com entrada de dinheiro ia melhorando a propriedade.

Após alguns anos de trabalhos e já estando usufruindo de bons negócios devido a venda de uma boia da e feito um bom negócio com café, João resolveu fazer uma reforma geral e construir outros benfeitorias, daí contratar profissionais competentes e entre eles estavam carmine e seus dois filhos.

A princípio o fazendeiro não notara a presença de filha em sua propriedade, ela não se interessava muito pelas terras, mas depois começou a notar e o pior, Condessa ia muito à oficina.

Romeu trabalhava honestamente sem ligar pela visita por duas razoes: primeiro, porque era um empregado; segundo, porque a moça era filha de seu patrão. O moço corava ao vê-la entrar vestida como amazonas, mas continuava seu trabalho. Reconhecia que não convinha ficar parado. E’ claro que fazia um descanso afim de explicar certos detalhes que propositadamente a moça pedia. Os demais empregados percebiam as intenções da jovem e a conduta cavalheiresca do empregado frente sua patroa.

Ela devia respeitar o trabalho dos funcionários e em particular de Romeu, mas seu interesse por ele estava acima de tudo e logo ela que até então nunca se interessara namorar alguém. Não que não houvesse, pois muitos moços fazendeiros estavam interessados em desposá-la.

Notando, portando, a presença constante de sua filha na oficina seu pai resolveu segui-la. Junto dele estava Cipriano, filho de seu administrador e chefe dos peões e muito interessado em Condessa seja por amo, ou pelo lado, se bem que as duas coisas faziam qualquer homem se interessar por ambos.

—-Filha, disse o pai, quando a viu muito chegada ao empregado.

— O que está havendo de novo para vir constantemente à fazenda e ficar aqui, um lugar bastante perigoso? Não percebe que além de atrapalhar os empregados, ainda pode sofrer um acidente?

—Não se preocupe, papai. Sei me defender. Afinal não sou mais uma criança!

O pai concordou, mas Cipriano não gostou nada de que presenciou. Percebeu e com muita raiva, de que havia interesse dela polo mesquinho ferreiro e o pior, este também tinha interesse pela jovem. Quando Condessa, seu pai e Cipriano saíram, Romeu ficou calmo, mas logo Cipriano voltou e num ímpeto de furiosidade foi desafiando.

—Você não se enxerga para namorar a filha do patrão?

Mais raivosamente Romeu, que sabia das intenções do adversário sobre a donzela, avançou com um ferro em brasa por cima de Cipriano, mas este muito esperto, fugiu. Carmine e outros empregados correram para conter o ferreiro.

—-Por que esse sujeito vem me tentar? Eu falei alguma coisa? Estou aqui trabalhando, cumprindo minhas obrigações, que história é essa de namorar a filha do patrão?

O fazendeiro soube do ocorrido e sou também que Cipriano estava errado, por isso fez-lhe séria advertência que ainda mais o irritou contra Romeu e acrescentou.

—Que isso não se repita. Não admito qualquer incidente entre empregados em minha fazenda!

Mas aconteceu. Cipriano estava cada vez mais ciumento e despeitado percebendo que Condessa estava amando Romeu, ela que antes não ligava a ninguém e esse ciúme acabou-lhe traindo e foi despachado do emprego, provocando com isso um desentendimento com o administrador, pai de Cipriano, o qual devia entender que uma coisa não, tem nada com a outra.

Romeu ficou e continuou seu trabalho e passado algum tempo Oliveira ficou definitivamente ciente que sua filha realmente estava namorando seu empregado. Com a certeza desse namoro e interessado num casamento da filha, não se opôs e o moço passou a namorá-la oficialmente inclusive em sua casa.

Poderiam os outros candidatos e sobretudo Cipriano compreender isso? Nunca e para tanto este convenceu seus amigos Felisberto, Renato e Fermino a pregar um susto e medo em Romeu, tentando com isso afastá-lo da herdeira de Oliveira e Silva. Cipriano armou, com seus comparsas uma armadilha e numa noite de domingo, quando o jovem regressava da casa de Condessa foi abordado por Cipriano e das conversas havidas fê-lo entender que pelo seu bem deveria desistir da moça enquanto era tempo, pois outros interessados no namoro de Magnólia estavam planejando atacá-lo. Romeu reagiu, pois o conhecia bastante para saber que não passava de um ciúme sujo e hipócrita mas Cipriano, mais uma vez derrotado em seu intento, já que Romeu se desembaraçava de seu opositor, munido de uma faca o conteve. O moço tentou uma luta, mesmo sabendo do perigo que corria. Da luta Cipriano mostrando-se fraco e covarde gritou por socorro, pois sabia que seus companheiros estavam de tocaia. Renato, Felisberto e Fermino vieram armados de canivete, peixeira e navalha e todos entraram em luta pela defesa de Cipriano.

O lugar era escuro e os quatro digladiando em luta acabaram retalhando o indefeso rapaz. Naquele lugar ermo não havia ninguém que pudesse ajudá-lo e testemunhar os componentes da briga. Quando os atacantes perceberam que Romeu havia caído transformado num monte de carne retalhada e julgando-o morto saíram em de balada por todos os cantos da pequena cidade.

Os pais de Romeu estavam inquietos. Já era tarde da noite e o filho não aparecia. Esperaram mais e mais preocupados ficavam à medida que as horas passavam, pois o mancebo não era de chegar tarde, até que Carmine e Pedro não se contentaram e resolveram sair a procura do jovem até chegar à casa de seu patrão. A mãe de Romeu, aflita, rezava à São Vicente Ferrer, fazendo promessas e preces.

—Patrão, meu filho até agora não chegou em casa! O patrão ficou apreensivo e também Condessa, que com as batidas na porta e o choro do velho, fê-la levantar-se da cama e aparecer na janela.

—Que vamos fazer, pai?! Faça alguma coisa! O desespero de todos não resolvia nada. Oliveira mandou que seu caseiro junto com Carmine e Pedro asissem pelas ruas e becos a procura do rapaz, mas a escuridão e o vento que se levantara não permitia ver nada. Nem fósforo, nem vela ficavam acesos. Dali há pouco começou a chover, vindo a atrapalhar mais ainda as buscas do desaparecido. Os moradores molestados pelo barulho foram se levantando e só pela madrugada, um dos habitantes que passava pelo lugar achou o corpo de Romeu encolhido num pequeno buraco perto de um barranco. Estava todo molhado e ensanguentado, suas roupas estraçalhadas, seu corpo retalhado. Ferido, procurou se arrastar para um refúgio, mas não pode.

—Valha meu Deus e São Vicente que nos ajude, gritou Carmine levantando os braços para o alto quando viu o filho amontoado daquela forma, sem poder dizer uma só palavra. Apenas gemia. Todas as pessoas ali presentes procuraram improvisar uma maca e trans portar o moço para sua casa.

Dona Luiza que estava cada vez mais aflita pela demora de seu marido os filhos, quando viu trazer seu Romeu daquele jeito, gritou o desmaiou, Clemente, Madalena, João, Marcela, Luis, enfim todos os parentes procuraram acomodar o ferido na cama acudir também Luiza. Rapidamente buscaram um curandeiro que morava numa barroca, distante alguns quilômetros e enquanto podiam iam limpando as sujeiras e pensando os ferimentos com remédios caseiros. Cobriram com um lençol e aguardavam a chegada do curador. Farmácia e farmacêutico não tinham na cidade. Médico, estava muito longe.

Voltando a si e reanimada com a sorte do filho, Luiza começou a rezar continuadamente em companhia dos parentes e vizinhos. O fazendeiro, tendo dispensado Carmine e Pedro dos serviços enquanto Romeu agonizava, por insistência da filha despachou um criado à cidade grande, com uma charrete para trazer o médico. Este ao examinar a vítima, declarou o caso encerrado, nem valia transportá-lo ao hospital.

Quem teria feito aquilo? Ninguém sabia. O único soldado tomou as devidas anotações e despachou ao seu superior, mas investigação mesmo, nada. Ali esperavam que os atacantes se apresentassem, mas ninguém veio.

Decorrido a novena em louvor ao Santo Padroeiro e estando Romeu agonizando, já que não morrera tão depressa, como o médico previra, dona Luiza tirou da parede o quadro e colocou-o no chão e em frente acendeu duas velas bentas e todos da casa inclusive Condessa passaram a rezar com mais devoção até que inesperadamente dormiram profundamente. Quando o dia começou a clarear, os galos cantarem, Romeu se levantou e todos acordaram espantados e glorificando a Deus Milagre! Milagre!! Milagre!!!