UM ROSTO DE MULHER

Conto Francisco Piccirilo

Encontrei-me há dias com o Joaquim Marcelo, após uma longa ausência. Notei nele uma certa desfiguração. Para mim, que o conheço há muitos anos, estava realmente diferente. Depois de uma boa conversa percebi suas modificações demonstradas pelos gestos e inquietações. Curioso, resolvi interpelá-lo.

—Joaquim, você está diferente! Houve algum problema em sua vida?

—Pelo contrário, estou curado.

—Curado de quê! então esteve doente?

—Não foi propriamente doença do corpo, mas da alma ou coisa parecida e isso me deixou um bom tempo transtornado. Mas feliz- mente estou bom.

Houve uma pausa, mas notei uma * reação por parte de Joaquim e voltei a arriscar uma confissão.

—Se você não quiser conter o que houve, não conte, mas se isso o tranquilizar, bem que gostaria de saber o que lhe aconteceu, principalmente porque não acredito em problemas da alma.

Embora um pouco titubeante, Marcelo vagarosamente, entrecortado de alterações físicas que ora parecia rir, ora chorar, alterava a voz, em seguida diminuía, foi desenrolando um caso, que a mim parecia um conto, não fosse as modificações emotivas demonstradas durante a narração, bem como o conhecimento que tenho dele.

Todas as manhãs ao ir de minha casa para o trabalho, costumava entrar na igreja para fazer minhas orações matinais. Nada melhor para aguentar o turno diário, assistir missa, receber a Sagrada Comunhão e sair abençoado, enfim.

A mim, isso era normal e na igreja entram diariamente um certo número reduzido de pessoas, pois, nos dias de semana, o assistir missas constitui devoção além disso, o pessoal em geral está ocupado com o trabalho nas indústrias, comércio, bancos e outras atividades. Interessante é que, não obstante haver aquele número comum de pessoas, sempre as mesmas caras; aquele grupo de senhoras, algumas bem idosas, outras maduras e uma ou outra moça, de preferência estudante, dia ou outro aparece uma determinada pessoa diferente, porém, assim como aparece, desaparece. Felizmente a igreja é um lugar sagrado, cuja entrada, como a saída, não custa nada, bastante respeitá-la; as portas estão sempre abertas a todas as pessoas crentes ou descrentes.

Minha presença na igreja constituía uma devoção, além disso, ela está entre minha casa e o local de trabalho cujo horário de um e do outro em nada me atrapalhava. Entretanto, certa manhã, estava ajoelhado e cabisbaixo fazendo normalmente minhas orações; ao levantar minha cabeça olhar para o altar, dei com os olhos no ROSTO DE UMA SENHORA JOVEM, que nesse momento ia se retirando do templo.

Como disse-lhe, além daquele grupo permanente, sempre aparece uma pessoa diferente, de preferência, estudante, mas aquele rosto me impressionou, não que fosse bonito de admirar ou feio de horrorizar, mas era diferente de outros rostos já acostumados por mim. Ela assim como entrar, sair e eu também me retirei, mas durante o dia, aquele rosto ficou gravado no meu subconsciente.

Nos dias de semana, como você deve saber, o sacerdote reza missas de preferência à defuntos de sétimo dia, trigésimo, aniversário de morte; daí a razão de aparecer gente diferente: são os familiares, vizinhos e amigos e essas missas sacros motivos para reatarem relações de amizades ou encontrar pessoas que não se viam há muito tempo. Ela faz um grande bem aos mortos e aos vivos, eis porque sempre há rostos diferentes. Em vésperas de exame escolar aparecem os estudantes que juntando aos seus estudos fazem orações e promessas para passar de ano, ou vem agradecer a conclusão, quem sabe?

Aquele rosto, entretanto, me chamou atenção; afinal, que tinha eu com ele? Nem sei quem era a pessoal, percebi em outra ocasião tratar-se de uma senhora casada; tinha aliança na mão esquerda, e daí! Ela frequentou a igreja durante alguns dias, devia ter feito uma novena, depois desaparecera. Mas, passados um bom tempo, apareceu, frequentou a igreja mais um período, outra novena talvez e novamente, sumiu. Todavia, comecei a sentir sua ausência. Foi, como disse antes, vez ou outra vinha uma pessoa diferente que assim como aparecia, desaparecia, cumprida a promessa, novenas ou outro ato piedoso.

Minha presença na igreja era normal em função do trabalho, por isso estava sempre presente, mas e a senhora?

Passados alguns dias de ausência, ei-la novamente; continuei vendo-a. O rosto era o mesmo, nem feio de espantar, nem bonito de admirar, mas tinha qualquer coisa de diferente dos outros rostos e o pior, me fazia relembrar algumas coisas do passado. Mas acontece que nunca tive um passado que obrigasse a relembrar coisas a não ser da outra encarnação. Acontece que sou suficientemente maduro para não acreditar na reencarnação. Nós nascemos e morremos uma só vez, a não ser no fim do mundo. Por que então aquele rosto forçava-me a retroceder na vida?

Ela nem me cumprimentava; seu aspecto era de uma senhora normal; devia ter uns trinta e três anos, idade que também Cristo tinha, cujo rosto, enquanto atraia os amigos, repelia seus inimigos, não que Ele os tivesse, mas as pessoas invejosas, egoístas e revolucionárias temiam chegar perto; mas e o rosto daquela mulher nem gorda, nem magra; nem alta e nem baixa, por que me provocava em explicação?!

Estava pensando em desistir de ir à igreja, mas refletia; se a igreja tem as portas abertas para todos; se a igreja é um templo sagrado, por que desistir? e mais ainda, se não tenho nada com a estranha criatura e ela muito menos comigo, porque desistir de frequentar, assistir missas, comungar, sair abençoado!

Quando nós, os fiéis retiramos, cada um toma seu caminho e pouco importa se o dia é frio, quente, chuvoso ou ventoso; em nada altera a natureza, apenas nós, cidadãos comuns é que tomamos precauções pessoais, mas acontece que para mim não era o problema da natureza e sim o rosto daquela mulher.

Mais tranquilo. Isso veio me garantir que sua presença me perturbava ao ponto de não querer mais frequentar a igreja de Deus. Notei que aquilo era uma horrível mortificação, verdadeira tentação semelhante a sofrida por Cristo no deserto, quando se preparava para enfrentar sua vida pública. Renunciei aquela comparação; longe de mim tamanho sacrifício. Não havia nenhuma necessidade para sofrer tanto. Mas rezei, implorei, prometi para que Deus em sua infinita misericórdia me defendes- se daquele suplicio. Un mes se passou sem que a senhora voltasse, mas voltou e a partir daí comecei a observá-la propositadamente e notei que seu rosto não mais me causava inquietação, como antes. Ele passou a ser mais lindo, mais formoso, mais impressionante. Percebi que o mal estava em min mesmo e não no ROSTO DA JOVEM SENHORA, que continuou frequentando a igreja, fazendo seus atos religiosos sem me conhecer e sem conhecê-la. Senti- me curado de um possível mal espiritual, que vinha me alienando, sem que ela tivesse culpa alguma

Limeira fevereiro de 1976